terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

"Bandido"


B a n d i d o
 

         Eu não sou nenhum marginal, como podem pensar os que ouvem meu nome. Vivi, sim, numa favela carioca, adotado por um homem esquisito e de péssima reputação. Nunca conheci pai nem mãe. Às vezes comia as sobras que me davam; outras, o que encontrava pelas proximidades do nosso barraco, porque o homem nunca me deixava ir longe. Só tomava banho quando chovia e podia me expor, de bom grado, àquela água dadivosa que caia do céu.

         No morro havia um cantinho especial de que gostava muito. Era uma ponta de muro antigo, em ruínas, onde eu costumava subir para ver o sol nascer. Ia até lá quando estavam por perto colegas do meu tamanho, pois quando eram os maiores que chegavam primeiro e dominavam o território, eu era sempre expulso aos gritos, em louca perseguição pelas vielas do morro. Quando eu conseguia galgar o topo daquele meu ponto de observação, sentia-me forte, era uma felicidade só!... Via surgirem por trás do Forte de Copacabana os primeiros raios solares, violáceos a princípio, depois vermelhos e, então, laranja, até se tornarem dourados e correrem pelas trilhas das ondas junto ao quebra-mar, chegando às areias do Posto Seis. Dali, uma réstia de luz fosforescente furava a nesga ainda livre entre os prédios da orla e vinha incidir sobre meus olhos, ofuscando-me. Então, eu descia, ébrio de luz, daquele muro e o meu dia estava ganho...

         O resto do tempo passava pelas redondezas, emporcalhando-me na sujeira das ruas onde o esgoto corria a céu aberto ou em folguedos infantis com os colegas. Ali adquiria, sem saber, a maioria dos vermes que estofavam a minha barriga enorme. Gostávamos de brincar de correr, de perseguição, mas, às vezes, apenas ficávamos observando as pessoas em suas brincadeiras: a mais comum era passarem homens correndo e viaturas policiais atrás deles com as sirenes ligadas. Ouvíamos os rojões, tiros e pipocos de metralhadora disparados ao léu, seguidos de gritos, choro, lamentações e, não raro, alguns corpos estendidos pelo caminho. Por isso, muitas vezes pensei em abandonar aquele palco de violência e medo, miséria e sujeira, mas o meu cantinho de muro velho de onde apreciava o nascente me prendia ali. Um dia, levantaram um edifício enorme para abrigar um hotel de luxo. Elevou-se tanto a construção que rompeu o gabarito da orla (acho que os hotéis têm esse privilégio!) e pior: acabou-se a última fresta na muralha de prédios por onde ainda se podia avistar o sol e a praia. Sumiram também as pessoas que, na areia, pareciam formiguinhas douradas com seus guarda-sóis coloridos. Para mim, então, foi o fim!... Era muito jovem ainda, mas resolvi ganhar o mundo, fugir da favela.

         Sem nada conhecer além da vizinhança e do meu muro-de-apreciar-auroras, agora sem serventia, peguei carona num furgão policial na hora em que ele cumpria a rotina de despejar no alto do morro dezenas de homens fardados de coturnos pretos. Aboletei-me, sem ser visto, num cantinho escuro perto da porta da viatura e só fui descoberto (e expulso a pontapés) quando ela já estava no asfalto quente da grande avenida litorânea.

         A dor dos chutes no traseiro passou logo, diante daquela visão: um marzão besta, azul-de-doer-a-vista, cercado de areia fina onde se exibia uma multidão de corpos femininos dourados, quase desnudos, cuja limpeza e cor eu logo atribui ao fato de se banharem naquelas águas maravilhosas. Quis experimentar também o frescor daquele azul deslumbrante, mas, descalço, desisti da ideia logo que toquei a areia fervente, que me queimou as plantas dos pés. Voltei ao calçadão e não sei por quanto tempo fiquei ali parado, apenas olhando o mar. Às vezes, passavam por mim meninos bem cuidados e cheirosos, mocinhas de laços no cabelo e olhar lânguido, quase sempre acompanhados por mulheres lindas que me olhavam com desprezo e nojo e afastavam seus amigos de mim, sempre que eu tentava segui-los.

         Mais tarde, sobreveio a sede, dominou-me a fome, e voltou uma antiga coceira por meu corpo inteiro, e tive medo, e me senti só, com saudade dos meus colegas do morro... Resolvi voltar. Mas não tinha a menor idéia do caminho de volta (eu descera no interior de uma viatura blindada). Enveredei por uma rua perpendicular à praia e logo encontrei outra avenida muito larga que, em vez de calçadão, tinha muitas lojas, bares, cafeterias, supermercados. Ali, consegui alguma coisa para comer, garimpando o lixo farto das casas comerciais. Passei a dormir sob a marquise de uma loja, onde já dormiam alguns mendigos que, a bem da verdade, não me maltratavam, mas também não podiam me ajudar. Às vezes, até dividiam comigo seus restos de comida...

         Fui-me acostumando àquela vida. Agora tinha liberdade, mas também sentia uma profunda tristeza. E foi neste ritmo que chegou para mim a idade de namorar, e eu já não podia ver moça bonita. Sentia um friozinho na espinha, uma coisa esquisita, um não-sei-quê. Mas, como sempre, era invariavelmente repelido.

         Certa manhã, porém, eu a vi: era clarinha e perfumada, vinha em minha direção com olhar firme e um certo ar de soberba. Parecia mais deslizar que caminhar. Meu coração disparou e eu já me dispunha ao assédio quando notei que ela estava acompanhada por uma mulher que a tratava carinhosamente e a chamava de Penélope. Não me intimidei porque Penélope tinha algo diferente, que me atraia. Aproximei-me. Valia a pena correr o risco de ser escorraçado por sua acompanhante por causa do meu aspecto deprimente de morador de rua.

         Foi então que notei que Penélope era paraplégica e seu andar deslizante e sinuoso devia-se ao uso de um pequeno artefato de alumínio parecendo uma cadeirinha de rodas. Não tive nenhuma pena dela por sua deficiência. Ao contrário, achei que aquele carrinho dava-lhe até um certo charme...  Ela era, de fato, a verdadeira Penélope Charmosa. Senti, isto sim, uma grande ternura por ela e logo pensei como teria sido bom se a tivesse podido levar comigo para assistir a um nascer do sol do alto do meu muro lá no morro (antes do hotel, é claro...)  Acho até que disse tudo isso no olhar quando me voltei para a mulher que a acompanhava, já esperando o pontapé no traseiro.

         Em vez disso, quando receosamente fitei aquela mulher, encontrei um rosto tranquilo e sorridente onde se sobressaía um par de lindos olhos azuis, como o céu daquela manhã radiosa. E, neles, adivinhei um misto de compreensão e carinho.

         A mulher, então, me pegou carinhosamente no colo, sentiu meu cheiro acre de rua, alisou meu pelo sujo, castigado por carrapatos e parasitas, e me afagou demoradamente. Apalpou minha barriga entulhada de vermes, e não me repudiou...

         Depois, adivinhou-me a fome canina acumulada e resolveu me levar para casa para fazer companhia a Penélope, sua cadelinha paraplégica. Antes, porém, colheu informações sobre minha origem e, tomando conhecimento da má reputação do meu ex-dono no morro do Pavãozinho, pensou:

         — Vou adotar este cãozinho!  Vai chamar-se "Bandido"!