B a n d i d o
Eu
não sou nenhum marginal, como podem pensar os que ouvem meu nome. Vivi, sim,
numa favela carioca, adotado por um homem esquisito e de péssima reputação.
Nunca conheci pai nem mãe. Às vezes comia as sobras que me davam; outras, o que
encontrava pelas proximidades do nosso barraco, porque o homem nunca me deixava
ir longe. Só tomava banho quando chovia e podia me expor, de bom grado, àquela
água dadivosa que caia do céu.
No
morro havia um cantinho especial de que gostava muito. Era uma ponta de muro
antigo, em ruínas, onde eu costumava subir para ver o sol nascer. Ia até lá
quando estavam por perto colegas do meu tamanho, pois quando eram os maiores
que chegavam primeiro e dominavam o território, eu era sempre expulso aos gritos,
em louca perseguição pelas vielas do morro. Quando eu conseguia galgar o topo
daquele meu ponto de observação, sentia-me forte, era uma felicidade só!... Via
surgirem por trás do Forte de Copacabana os primeiros raios solares, violáceos
a princípio, depois vermelhos e, então, laranja, até se tornarem dourados e
correrem pelas trilhas das ondas junto ao quebra-mar, chegando às areias do
Posto Seis. Dali, uma réstia de luz fosforescente furava a nesga ainda livre
entre os prédios da orla e vinha incidir sobre meus olhos, ofuscando-me. Então,
eu descia, ébrio de luz, daquele muro e o meu dia estava ganho...
O
resto do tempo passava pelas redondezas, emporcalhando-me na sujeira das ruas
onde o esgoto corria a céu aberto ou em folguedos infantis com os colegas. Ali
adquiria, sem saber, a maioria dos vermes que estofavam a minha barriga enorme.
Gostávamos de brincar de correr, de perseguição, mas, às vezes, apenas
ficávamos observando as pessoas em suas brincadeiras: a mais comum era passarem
homens correndo e viaturas policiais atrás deles com as sirenes ligadas.
Ouvíamos os rojões, tiros e pipocos de metralhadora disparados ao léu, seguidos
de gritos, choro, lamentações e, não raro, alguns corpos estendidos pelo
caminho. Por isso, muitas vezes pensei em abandonar aquele palco de violência e
medo, miséria e sujeira, mas o meu cantinho de muro velho de onde apreciava o
nascente me prendia ali. Um dia, levantaram um edifício enorme para abrigar um
hotel de luxo. Elevou-se tanto a construção que rompeu o gabarito da orla (acho
que os hotéis têm esse privilégio!) e pior: acabou-se a última fresta na
muralha de prédios por onde ainda se podia avistar o sol e a praia. Sumiram
também as pessoas que, na areia, pareciam formiguinhas douradas com seus
guarda-sóis coloridos. Para mim, então, foi o fim!... Era muito jovem ainda,
mas resolvi ganhar o mundo, fugir da favela.
Sem
nada conhecer além da vizinhança e do meu muro-de-apreciar-auroras, agora sem
serventia, peguei carona num furgão policial na hora em que ele cumpria a
rotina de despejar no alto do morro dezenas de homens fardados de coturnos
pretos. Aboletei-me, sem ser visto, num cantinho escuro perto da porta da
viatura e só fui descoberto (e expulso a pontapés) quando ela já estava no
asfalto quente da grande avenida litorânea.
A
dor dos chutes no traseiro passou logo, diante daquela visão: um marzão besta,
azul-de-doer-a-vista, cercado de areia fina onde se exibia uma multidão de
corpos femininos dourados, quase desnudos, cuja limpeza e cor eu logo atribui
ao fato de se banharem naquelas águas maravilhosas. Quis experimentar também o
frescor daquele azul deslumbrante, mas, descalço, desisti da ideia logo que
toquei a areia fervente, que me queimou as plantas dos pés. Voltei ao calçadão
e não sei por quanto tempo fiquei ali parado, apenas olhando o mar. Às vezes,
passavam por mim meninos bem cuidados e cheirosos, mocinhas de laços no cabelo
e olhar lânguido, quase sempre acompanhados por mulheres lindas que me olhavam
com desprezo e nojo e afastavam seus amigos de mim, sempre que eu tentava
segui-los.
Mais
tarde, sobreveio a sede, dominou-me a fome, e voltou uma antiga coceira por meu
corpo inteiro, e tive medo, e me senti só, com saudade dos meus colegas do
morro... Resolvi voltar. Mas não tinha a menor idéia do caminho de volta (eu
descera no interior de uma viatura blindada). Enveredei por uma rua
perpendicular à praia e logo encontrei outra avenida muito larga que, em vez de
calçadão, tinha muitas lojas, bares, cafeterias, supermercados. Ali, consegui
alguma coisa para comer, garimpando o lixo farto das casas comerciais. Passei a
dormir sob a marquise de uma loja, onde já dormiam alguns mendigos que, a bem
da verdade, não me maltratavam, mas também não podiam me ajudar. Às vezes, até
dividiam comigo seus restos de comida...
Fui-me
acostumando àquela vida. Agora tinha liberdade, mas também sentia uma profunda
tristeza. E foi neste ritmo que chegou para mim a idade de namorar, e eu já não
podia ver moça bonita. Sentia um friozinho na espinha, uma coisa esquisita, um
não-sei-quê. Mas, como sempre, era invariavelmente repelido.
Certa
manhã, porém, eu a vi: era clarinha e perfumada, vinha em minha direção com
olhar firme e um certo ar de soberba. Parecia mais deslizar que caminhar. Meu
coração disparou e eu já me dispunha ao assédio quando notei que ela estava
acompanhada por uma mulher que a tratava carinhosamente e a chamava de
Penélope. Não me intimidei porque Penélope tinha algo diferente, que me atraia.
Aproximei-me. Valia a pena correr o risco de ser escorraçado por sua
acompanhante por causa do meu aspecto deprimente de morador de rua.
Foi
então que notei que Penélope era paraplégica e seu andar deslizante e sinuoso
devia-se ao uso de um pequeno artefato de alumínio parecendo uma cadeirinha de
rodas. Não tive nenhuma pena dela por sua deficiência. Ao contrário, achei que
aquele carrinho dava-lhe até um certo charme...
Ela era, de fato, a verdadeira Penélope Charmosa. Senti, isto sim, uma
grande ternura por ela e logo pensei como teria sido bom se a tivesse podido
levar comigo para assistir a um nascer do sol do alto do meu muro lá no morro
(antes do hotel, é claro...) Acho até
que disse tudo isso no olhar quando me voltei para a mulher que a acompanhava,
já esperando o pontapé no traseiro.
Em
vez disso, quando receosamente fitei aquela mulher, encontrei um rosto
tranquilo e sorridente onde se sobressaía um par de lindos olhos azuis, como o
céu daquela manhã radiosa. E, neles, adivinhei um misto de compreensão e
carinho.
A
mulher, então, me pegou carinhosamente no colo, sentiu meu cheiro acre de rua,
alisou meu pelo sujo, castigado por carrapatos e parasitas, e me afagou
demoradamente. Apalpou minha barriga entulhada de vermes, e não me repudiou...
Depois,
adivinhou-me a fome canina acumulada e resolveu me levar para casa para fazer
companhia a Penélope, sua cadelinha paraplégica. Antes, porém, colheu
informações sobre minha origem e, tomando conhecimento da má reputação do meu
ex-dono no morro do Pavãozinho, pensou:
—
Vou adotar este cãozinho! Vai chamar-se "Bandido"!